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Breves comentários sobre a decisão do STJ que reconheceu a ilegitimidade de ex-ocupante de imóvel da União para responder pelas cobranças de taxa de ocupação

Escrito por em 30 maio, 2017

Publicado originariamente no Portal Migalhas, em 29 de Maio de 2017, na seção “migalhas de peso” – Clique aqui p/ acesso

 

Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues

Recentemente, ao julgar o AREsp 980.010-RJ (16/02/2017), a 1ª turma do STJ reconheceu a ilegitimidade passiva de um ex-ocupante de imóvel da União para responder pelas cobranças de taxa de ocupação lançadas em seu nome.

Esse julgamento, que ganhou maior publicidade por ter sido objeto de matéria na seção de notícias do sítio do STJ na internet, chamou a atenção pelo fato de, hipoteticamente, ter superado entendimento anterior da jurisprudência, no sentido de que a transferência dos direitos sobre a inscrição de ocupação somente pode ser admitida quando é feita com expressa autorização da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), que é obtida, pelo interessado, com o prévio recolhimento do laudêmio, a fim de que seja expedida a Certidão Autorizativa de Transferência (CAT) para lavratura do ato de transferência em Cartório de Notas.

No caso em tela, o ex-ocupante havia sido inscrito na Dívida Ativa da União (DAU) porque era a pessoa que permanecia inscrita no Registro Imobiliário Patrimonial (RIP) do imóvel, inobstante tivesse transferido a “posse” a um terceiro (a que tudo indica, sem a competente autorização), que passou a ocupar o imóvel público.

O ponto nevrálgico da questão reside no fato de o ex-ocupante ter comprovado, na oportunidade da oposição feita à execução fiscal que lhe foi promovida, que a União tinha ciência de que ele não ocupava mais o imóvel.

Essa “ciência” se deu em ação de interdito proibitório proposta contra ele, na qual houve ingresso de um terceiro, que admitiu ter a “posse” e ocupar o imóvel desde 1997, ano este em que teria adquirido do ex-ocupante os direitos possessórios do imóvel através de escritura de promessa de cessão de direitos de posse.

Ocorre que a Fazenda Nacional se manifestou neste processo (interdito proibitório) e declarou que nada teria a opor ao acordado entre as partes que haviam celebrado a escritura, desde que fosse procedida “a regularização de eventuais pendências junto à Delegacia de Patrimônio da União, a qual deverá ser informada da transferência da posse, inclusive, para fins de modificação dos dados sobre a ocupação e o pagamento das taxas, na forma da Lei de bens imóveis da União”.

 De outro lado, a Advocacia Geral da União (AGU) também se manifestou, naquele interdito proibitório, no sentido de reconhecer que o direito (posse) discutido no processo havia passado a fazer parte do patrimônio do adquirente (outorgado na escritura de transferência de posse), tanto é que opinou pela extinção do processo sem julgamento do mérito, requerendo fosse oficiada à SPU sobre a transferência da posse.

E foi exatamente essa prova documental, extraída do processo de interdito proibitório, a principal baliza para decisão do STJ que acolheu o Agravo em Recurso Especial interposto pelo ex-ocupante, a fim de julgar procedente a exceção de pré-executividade por ele oposta, em face de sua ilegitimidade para responder o executivo fiscal.

Da ementa do acórdão proferido no AREsp constou o seguinte: “Compete ao alienante, que consta no registro administrativo, comunicar à titular da área do terreno de marinha a sua vontade de transferir a terceiro os direitos sobre a ocupação do imóvel, a fim de possibilitar as devidas anotação no registro, o que ocorreu no caso dos autos”.

De início, pontua-se que o cedente dos direitos possessórios não pode ser tido como “alienante”, mas, tão somente, mero “transmitente”, dado que não possuí domínio algum sobre o imóvel.

O teor da ementa acima transcrita, se interpretada isoladamente, pode induzir a erro seu intérprete. Na realidade, compete ao “adquirente”, no contexto das transações imobiliárias, comunicar à União da transferência realizada, a fim de que a mesma seja averbada no RIP do imóvel, atualizando-se, dessa forma, os dados cadastrais para o nome do novo ocupante.

Tal assertiva é a exegese do § 4º do art. 3º do decreto-lei 2.398/87, alterado pela lei 9.636/98: “Concluída a transmissão, o adquirente deverá requerer ao órgão local da SPU, no prazo máximo de sessenta dias, que providencie a transferência dos registros cadastrais para o seu nome, observando-se, no caso de imóvel aforado, o disposto no art. 116 do decreto-lei no 9.760, de 1946.” (Grifamos).

Essa “transmissão” é feita por meio de escritura pública, que somente pode ser lavrada com expressa autorização da União. Sendo uma transação onerosa, recolhe-se o laudêmio. Tratando-se de transação não onerosa, dispensa-se o recolhimento do laudêmio.

No caso em tela, a transferência de posse foi feita por escritura pública lavrada na data de 08/08/1997, a que tudo indica sem expressa autorização da União, ENTRETANTO antes da entrada em vigor da lei 9.636/98, que passou a responsabilizar os titulares das Serventias Notariais e Registrais que lavrem ou registrem “escrituras relativas a bens imóveis a bens imóveis de propriedade da União, ou que contenham, ainda que parcialmente, área de seu domínio: I – sem certidão da Secretaria do Patrimônio da União – SPU que declare: a) ter o interessado recolhido o laudêmio devido, nas transferências onerosas entre vivos; b) estar o transmitente em dia, perante o Patrimônio da União, com as obrigações relativas ao imóvel objeto da transferência; c) estar autorizada a transferência do imóvel, em virtude de não se encontrar em área de interesse do serviço público; II – sem a observância das normas estabelecidas em regulamento (Destacamos).

Na época da lavratura da escritura (08/08/1997), vigia o art. 3º do decreto-lei n° 2.398/1987, regulamentado pelo decreto 95.760/88, que PERMITIA A TRANSMISSÃO DOS DIREITOS SOBRE A OCUPAÇÃO SEM A PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DA SPU, desde que cumpridas certas formalidades, dentre elas o recolhimento do laudêmio.

Portanto, entre a regulamentação da redação original do art. 3º, pelo decreto 95.760/88, publicado em 02/03/1988, e o início da vigência da lei 9.636/98, publicada em 18/05/1998, a autorização da União Federal não era necessária para lavratura da escritura pública de transmissão dos direitos sobre a inscrição de ocupação do imóvel, no que pese fosse necessário o prévio recolhimento do laudêmio, cujo cálculo, diga-se a título de esclarecimento, era de responsabilidade do interessado e não da SPU como o é hoje.

Deixando um pouco de lado a questão da necessidade de autorização da União para transferência de direitos que envolvam imóveis de sua propriedade, torna-se interessante abordar dois diplomas citados como supedâneo à decisão do Colendo STJ, quais sejam os decretos-leis 2.490/40 e 3.438/41. Este diploma legal ingressou em nosso ordenamento jurídico a fim de esclarecer e ampliar o decreto-lei 2.490/40, que nem mais consta do repositório legislativo do sítio da Presidência da República do Brasil na internet.

Referido decreto-lei (ampliado) “estabelece normas para o aforamento dos terrenos de marinha”. Sabe-se que o aforamento é instituto distinto ao da ocupação, portanto não se presta à regulamentação deste. Entretanto, temos o decreto-lei 3.438/41, que esclareceu e também ampliou aquela outra letra.

A bem da verdade, os decretos-leis citados foram revogados tacitamente pelo decreto-lei 9.760/46 e por outros diplomas legais que os sucederam, contudo não se podendo afirmar, com total certeza, se a revogação foi parcial ou total.

Note-se que a discussão poderia cingir-se, ainda, sobre outros dois pontos.

O primeiro deles de que é direito do ocupante precário de imóvel da União, simplesmente, renunciar, no sentido lato, à inscrição de ocupação da qual é titular, bastando, para tanto, comunicar a União Federal de sua intenção, através do órgão da SPU. A situação é análoga a do foreiro, que tem o direito de abandonar o imóvel ao senhorio direto, porém dela difere por não haver contrato entre as partes e nem constituição de direito real sobre coisa alheia.

Nesse primeiro caso (ponto), o ocupante não estaria transmitindo o bem para um terceiro, ocorrendo, na realidade, o cancelamento da inscrição de ocupação em seu nome e, portanto, do lançamento da taxa de ocupação sob sua responsabilidade. A princípio, a “posse” do imóvel retornaria à União, porque o domínio pleno nunca dela se afastou.

O segundo ponto a ser discutido é considerar ou não “ocupante”, para fins de lançamento e cobrança da taxa de ocupação, a pessoa que ocupa de fato o imóvel da União e tem justo título não aceito pela SPU, portanto, independentemente de encontrar-se regularmente inscrita. Verdade é que não há como a União Federal, representada pelo órgão da SPU, omitir-se frente a seu dever de fiscalizar e regularizar as ocupações de imóveis sob seu domínio, mormente pelo fato de a própria lei direcionar nesse sentido.

Resumindo o até aqui exposto, considera-se justa e benéfica a decisão proferida no AREsp 980.010-RJ, a servir de precedente para aplicação nas execuções fiscais em que ex-ocupantes de imóveis da União estejam sendo penalizados com a cobrança de taxa de ocupação, desde que a situação desses casos seja análoga à daquele recorrente, divorciando-se da correta hermenêutica, a nosso ver, interpretar o referido aresto sob a ótica de que a legislação administrativa que rege os bens da União teria sido mitigada, a pretexto de utilizar esse julgado para, indiscriminadamente, afastar a necessária obtenção de autorização da União, por intermédio da SPU, para transferência de direitos que envolvam imóveis regularmente incorporados a seu patrimônio, no contexto das transações imobiliárias que envolvam bens da União.

Conclui-se, portanto, que se o ocupante precário de imóvel da União cientificou, de forma inequívoca, este ente público de sua vontade de não mais ocupar o imóvel, não pode ele mais responder pelas taxas de ocupação dos exercícios seguintes ao de sua comunicação.

O mesmo se diga do ocupante precário que cedeu seus direitos “possessórios” a outrem, sem autorização da União, porém com a ciência inequívoca deste sujeito de direito público, que poderá adotar mais de uma postura, a depender do conjunto de diplomas legislativos em vigor à época dos fatos, tal como inscrever o novo ocupante e cobrar o laudêmio do cedente, bem como as taxas de ocupação do cessionário inscrito (desde que essas duas espécies de receitas patrimoniais não tenham sido atingidas pelos fenômenos da decadência e/ou da prescrição); exigir que a escritura pública de cessão de direitos “possessórios” seja rerratificada e/ou aditada para que passe a constar o recolhimento do laudêmio e a expressa autorização da União (que somente poderá ser obtida com o adimplemento das obrigações junto à SPU, com origem na utilização do imóvel); imitir-se sumariamente na posse do imóvel, caso não aceite o cessionário como ocupante de sua propriedade, por entender que ele não atende os requisitos da lei ou por haver interesse do serviço público na área; entre outras variáveis quem escapam deste breve ensaio.

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*Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues é advogado e professor especialista em Direito Notarial e Registral Imobiliário, membro da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP.

 

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