A não incidência do laudêmio na transmissão causa mortis
Publicado originariamente no Portal Jurídico Migalhas, em 01 de abril de 2019. Clique aqui para acesso.
Por Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues
Elemento fundamental a ser levado em conta na hipótese de incidência dessa receita patrimonial é a onerosidade do negócio jurídico. Por isso mesmo, ela não incide sobre a doação, por tratar-se de transação não onerosa, mas incide sobre a dação em pagamento.
O laudêmio é uma receita patrimonial da União, devida pelo ocupante ou pelo foreiro que transfere, entre vivos e onerosamente, os direitos sobre sua inscrição de ocupação ou o domínio útil de sua titularidade, respectivamente, de bem imóvel pertencente ao referido ente público, correspondente à importância de 5% (cinco por cento) do valor atualizado do domínio pleno do terreno, excluídas as benfeitorias nele construídas.
Seu prévio recolhimento é condição sine qua non para a realização do negócio jurídico oneroso envolvendo bem da União que esteja cadastrado sob o regime de ocupação ou de aforamento.
Elemento fundamental a ser levado em conta na hipótese de incidência dessa receita patrimonial é a onerosidade do negócio jurídico. Por isso mesmo, ela não incide sobre a doação, por tratar-se de transação não onerosa, mas incide sobre a dação em pagamento.
O fato de o doador estar desobrigado do pagamento do laudêmio, não afasta o necessário atendimento às outras condições previstas na legislação, com vistas a que a transferência por doação seja autorizada pela União.
Referidas condições, que devem ser observadas tanto nas transações não onerosas como nas onerosas, são o imóvel objeto da transferência não se encontrar em área de interesse do serviço público e o transmitente estar em dia, perante o Patrimônio da União, com as obrigações relativas a esse bem.
O documento hábil à comprovação dessas condições, inclusive do pagamento do laudêmio, é a Certidão Autorizativa de Transferência (CAT).
Por óbvio, estamos falando dos bens dominicais, que estão dentro do comércio, tendo como seu maior expoente o terreno de marinha, porém não sendo esta a única espécie a integrar o rol de bens da União, como se observa do art. 20 da Carta Magna.
A transferência entre vivos dos direitos que o ocupante ou o foreiro é titular necessita ser formalizada por escritura pública cuja lavratura depende do prévio recolhimento do laudêmio, no caso de tratar-se de uma transação onerosa, e da apresentação da CAT ao Notário, o qual tem o dever de transcrever ipsis litteris esta certidão, no corpo do ato notarial, ou arquivá-la em pasta própria do Cartório de Notas (Serviço Notarial).
Tratando-se de título judicial, o laudêmio deve ser recolhido aos cofres da União e a CAT apresentada diretamente ao Oficial do Registro de Imóveis, por ocasião do registro do título.
Quando fazemos referência à transferência de direitos, por parte do foreiro, que fique claro tratar-se do domínio útil, portanto, não sendo equivocada a utilização de terminologia diversa nesses casos, como “alienação” ao invés de “transferência”, visto que o aforamento (=enfiteuse) é um direito real sobre coisa alheia, diferentemente da inscrição de ocupação.
Feitas essas considerações iniciais, o que falar da transmissão “causa mortis”? Haveria neste caso a incidência do laudêmio? Caso positivo, em quais hipóteses?
Primeiramente, a sucessão causa mortis não é considerada uma transação onerosa, portanto não há incidência do laudêmio, pois, como vimos acima, esta receita patrimonial somente incide sobre os atos “inter vivos” e onerosos.
Em decorrência do princípio da saisine, ocorrendo o falecimento, a posse e a propriedade dos bens são imediatamente transmitidas aos herdeiros do “de cujus”, conquanto nenhum deles possa destacar um bem singular de sua quota-parte ideal no acervo hereditário, antes de realizada a partilha.
De outro lado, não poderá o herdeiro ceder seus direitos sobre qualquer bem da herança considerado singularmente, apenas o quinhão hereditário de que disponha (ou parte dele) sobre a universalidade dos bens, em razão da herança ter caráter unitário e indivisível até que se opere a partilha.
Com a partilha, essa indivisão cessará, ficando o direito de cada um dos herdeiros circunscrito aos bens recebidos em pagamento de seu quinhão.
O registro do formal de partilha (inventário judicial) ou da escritura pública de partilha (inventário extrajudicial) não tem o condão de transferir a propriedade imóvel, visto que esta já foi transmitida no momento da abertura da sucessão com o falecimento do “de cujus”, como já esclarecido. A bem da verdade, o registro na matrícula imobiliária desse título servirá para conferir-lhe a tão desejada publicidade erga omnes e permitir que os novos proprietários alienem sua parte ideal ou sobre ela constituam direito real de garantia, se assim desejarem.
Particularmente, gostamos de pensar no ato de registro da partilha como sendo declaratório do direito do herdeiro, a fim de distingui-lo do ato constitutivo, que se daria acaso a propriedade fosse transferida com o registro do título.
Sendo assim, desnecessário o recolhimento prévio de laudêmio para lavratura de escritura pública de inventário e partilha envolvendo bens imóveis da União, embora imprescindível a apresentação da CAT, em atendimento a exigência contida no §2º do art. 3º do Decreto-lei n° 2.398/1987, com redação dada pelas Leis 9.636/1998 e 13.465/2017.
Note-se que a partilha faz cessar o estado de comunhão da universalidade dos bens da herança, com a atribuição ao herdeiro, em pagamento de seu quinhão hereditário, de uma quota-parte ideal de cada bem imóvel que compõe o acervo hereditário, o que remete, no caso acima, às condicionantes de não haver interesse do serviço público e o transmitente (espólio) estar em dia, perante o Patrimônio da União, com as obrigações relativas ao imóvel objeto da transferência.
Não havendo a possibilidade de obtenção da CAT, os herdeiros devem optar pelo inventário judicial, visto que, eleita esta via, a homologação da partilha e a expedição do respectivo formal independerão da apresentação da aludida certidão, no entanto, devendo ser apresentada ao Oficial do Registro de Imóveis, por ocasião do registro do formal de partilha, como já esclarecido.
Agora, suponha-se que a divisão das partes ideais de um imóvel não seja feita de forma igualitária entre os herdeiros, ou seja, num monte mor composto por mais de um imóvel, aplicações financeiras, dinheiro em espécie, veículos automotores e outros bens, os pagamentos dos quinhões sejam feitos de forma a afastar a manutenção de condomínio entre os herdeiros.
Haveria, nesse caso, a incidência do laudêmio sobre a “transmissão”?
Entendemos que não.
Partimos da seguinte premissa sustentada em obra de nossa autoria: “o quinhão não é sinônimo de propriedade sobre parte ideal de bem imóvel, não havendo necessidade da manutenção de um condomínio entre os herdeiros após a partilha, e o fato de um herdeiro receber imóvel como pagamento de seu quinhão não implica que esteja sendo feita uma transação onerosa, muito menos que as partes estejam auferindo vantagem” (RODRIGUES, 2016, p. 240).
E, com isso, queremos dizer que o herdeiro possui uma quota-parte ideal sobre a herança como um todo, porquanto una e indivisível antes da partilha, razão pela qual não possuí o herdeiro, desde a abertura da sucessão, uma quota-parte ideal de imóvel específico do acervo hereditário.
Essa especificidade passa a existir após a partilha, que põe fim à indivisibilidade da herança, aí sim, recebendo, ou não, o herdeiro, a integralidade ou quota-parte ideal de imóvel que componha o espólio dos bens deixados pelo “de cujus”, não importando se o pagamento de seu quinhão estará sendo feito com um ou mais bens imóveis do acervo hereditário, desde que observada a igualdade com os valores pagos aos demais herdeiros, a consensualidade e o não prejuízo de qualquer deles, em face do que representa o monte mor.
É por isso que o recebimento pelo herdeiro da totalidade de um imóvel inventariado, ao invés de uma quota-parte ideal deste na divisão, não configura uma transação onerosa, visto que nada ganhou a mais do que já era seu por direito.
A partilha tem efeito apenas declaratório do direito preexistente, por isso que retroage ao momento do falecimento do autor da herança.
E não se queira comparar o laudêmio ao Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), em razão do primeiro não ser tributo, mas, sim, receita patrimonial regida por legislação especial dos bens da União.
Ainda que, impropriamente, fosse feita qualquer analogia com o fim de sustentar a cobrança do laudêmio nesses casos, importante seria trazer à tona a jurisprudência consolidada no STF e no SJT, no sentido de que o ITBI não incide sobre o compromisso de compra e venda (vide AC nº 1002630-12.2014.8.26.0587, julgada pelo Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 15/12/2015), exatamente por este instrumento não transferir o domínio do imóvel, situação que se assemelha à transferência de direitos sobre a inscrição de ocupação de bem imóvel da União, em que o domínio pleno permanece com este ente público.
Aliás, entendemos que o ITBI não incide sobre a transferência de bens da União cadastrados sob o regime de ocupação precária, especialmente quando verificada a impossibilidade de assentamento do título no registro de imóveis competente, mas esse tema merece ser abordado de forma mais ampla em artigo próprio.
Referências bibliográficas:
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, vol. 6.
RODRIGUES, Rodrigo Marcos Antonio. Curso de Terrenos de Marinha e seus Acrescidos. 2. ed. São Paulo: Pillares, 2016.
_____. O que é LAUDÊMIO? Disponível em: http://www.laudemio.com.br. Acesso em 21.10.2018.
Rodrigo Marcos Antonio Rodrigues é advogado atuante no escritório Lopes & Lopes – Advogados Associados